LEIA EM INGLÊS
Christoph Irmscher
Tradução de Marcela Lemos1
A caverna, na República de Platão, é uma prisão, um lugar onde os humanos, ignorantes da realidade, passam a vida a contemplar as sombras das coisas (que são, na verdade, efígies de madeira de animais e plantas carregadas para além da caverna por homens escondidos atrás de uma parede). Quando um desses prisioneiros escapa e, depois de desfrutar da plenitude da vida ensolarada lá fora, volta para contar aos outros sua sobre experiência, eles não acreditam nele. Para eles, o fato de que esse homem retorna cego, seus olhos incapazes de se reajustar à escuridão da caverna, apenas confirma que é melhor ficar parado. A verdade é para quem se atreve a partir. Mas, como Platão bem sabe, nem todos podem ser filósofos.
Arqueólogos encontraram evidências do uso do ocre – ou, como coloca Ekman, “o sangue que dá vida às … pinturas rupestres” – em cavernas remotas no Quênia, Zâmbia, África do Sul, Austrália, Holanda e também na América do Sul, onde abrigos rochosos da Serra da Capivara, no nordeste brasileiro, contêm vestígios do povoamento mais antigo do continente. Ali, artistas antigos, traçando as ondulações naturais das rochas, empregaram vários tons de ocre para criar alguns dos exemplos mais notáveis da antiga arte rupestre no mundo– centenas de milhares de imagens, muitas delas parte de painéis de um metro de comprimento, exibindo animais então conhecidos (veados, onças, emas extintas, capivaras) e humanos em atividades como caça, dança, sexo, altercações e rituais. Investigações sobre ferramentas de pedra e lareiras mostram que os primeiros humanos viveram nessas cavernas há cerca de 50.000 anos—evidência que complica a teoria aceita de assentamento americano através do estreito de Bering e sugere conexões profundas entre as primeiras ondas humanas que povoaram a América do Sul e as culturas originários do continente africano.
Ekman trata as cavernas não como prisões mas como úteros, locais de renovação e renascimento, evocando uma tradição que se estende pelo mundo – pensemos nas cavernas de lava sagrada do Monte Fuji, no Mundus circular subterrâneo colocado sob templos etruscos e romanos, e na caverna na qual, segundo alguns relatos, Cristo nasceu. Várias porções da montagem de Ekman apresentam a própria artista nua, uma figura poderosa, orgulhosa e ctônica, seu corpo cheio e luminoso tanto um produto desse ambiente quanto seu símbolo controlador: uma resposta eficaz às imagens supostamente “etnográficas” em que a nudez serve para objetificar e humilhar, em vez de elevar, as mulheres indígenas. No primeiro segmento, Ekman está sentada em uma pedra, sua pele iluminada e suas pernas firmemente fechadas, uma máscara pressionada contra o rosto, sugerindo tanto controle quanto potencial para abandono, vulnerabilidade e disciplina – a essência do ritual.

Na série “Ocre,” de Ekman, entretanto, a feminilidade não é uma característica distinta ou exclusivamente humana, mas um princípio gerador compartilhado por todo um universo de coisas criadas, compartilhado até mesmo com as rochas, que, na série, se arranjam quase inevitavelmente em formas triangulares alusivas aos órgãos reprodutores femininos. A própria Ekman aparece dentro de um desses triângulos, formado pela luz que ilumina seu corpo. Diminuída pelo ambiente ao mesmo tempo em que santificada por ele, ela parece uma Vênus nascida não do mar, mas do que a poetisa estadunidense Sylvia Plath chamou “the jut of the ochreous rock,” ou “o pontão da rocha ocre.”




Na minha cena favorita da série, Sandra Nanayna Tariano, com a pele adornada com padrões em ocre, uma maravilha estampada, aparece de pé diante de um painel de desenhos rupestres, com os braços estendidos numa posição que repete justamente a postura de uma das figuras da parede. O passado remoto e o presente recente se encontram aqui, unindo pedra e corpo, desenho na pedra e desenho na pele. A fotografia, produto da tecnologia moderna, celebra essa fusão, mas de forma a subverter as convenções .do retrato ocidental – aqui não há primeiro e segundo plano e, a qualquer ato singular de criatividade que tenha colocado o corpo pintado de Tariano diante da lente, já se anteciparam e sucederam vários outros atos de criatividade: os deixados na pedra pelos antigos artistas desconhecidos e os deixados no corpo de Tariano pelo carimbo de cerâmica ou pintadera feito pela própria Ekman. Condensando milhares de anos no instante capturado pela câmera, Ekman desafia não apenas uma tradição filosófica, na qual a verdade e o discernimento são vistos como resultado da jornada para fora da caverna, mas também a maneira como tendemos a escrever a história da humanidade, tão nitidamente dividida em períodos marcados pela conquista e pelo genocídio. O ocre estava lá desde o início; na obra de Ekman, ela simboliza a persistência, perseverança e resiliência das culturas indígenas.


As mãos do Sandra Tariano, segurando uma das pintaderas, ainda escorregadia com o ocre vermelho, dominam a penúltima imagem da série. Há muito que as mãos fascinam os artistas, de Dürer a Michelangelo e ao escultor Henry Moore, que fez uma série de desenhos de suas mãos aos oitenta e um anos de idade: “As mãos transmitem tanto,” disse Moore, “elas podem implorar ou recusar, tomar ou dar, estar abertas ou cerradas, mostrar satisfação ou ansiedade. Elas podem ser jovens ou velhas, belas ou deformadas.” As mãos de Tariano estão abertas e generosas, segurando a pintadera para que o observador a inspecione como se fosse um bebê recém-nascido. Nesta fotografia, o fundo desfocado mantém a atenção do observador firme nas mãos, que não são quaisquer mãos, tampouco apenas as mãos da Tariano, mas obras de arte em si mesmas – não porque elas aparecem numa foto composta artisticamente, mas no sentido literal, cobertas como estão de estampas provavelmente feitas com a mesma pintadera que seguram.


1Marcela Lemos (mardeoli@iu.edu) é doutoranda em português na Universidade de Indiana, Bloomington.